Potencial do remédio para tratamento ou prevenção de Covid-19 ainda não
foi comprovado em estudos de grande porte.
A Organização Mundial de Saúde
(OMS) anunciou na última terça-feira (2) a retomada dos testes clínicos com
cloroquina para o tratamento de Covid-19. Estudos com a substância (ou sua derivada,
a hidroxicloroquina) estavam suspensos desde o dia 25 de maio, para que
cientistas avaliassem mais à fundo a segurança do remédio – e eventuais riscos
à saúde.
A decisão por interromper os
testes foi motivada por um estudo publicado na revista científica The Lancet,
uma das mais respeitadas do mundo, no dia 22 de maio. Era nada menos que o
maior
levantamento já feito sobre uso de cloroquina em casos de Covid-19:
envolveu 96 mil pessoas em 671 hospitais e seis continentes.
A conclusão do estudo? Não
pareciam existir benefícios do uso da substância para o tratamento da doença.
Pelo contrário: quando combinadas com a azitromicina, um antibiótico, a
cloroquina e a hidroxicloroquina aumentavam a letalidade – tornando maior também
as chances de que a pessoa sofresse arritmia cardíaca grave.
A metodologia do estudo em
questão, porém, foi colocada em xeque nos últimos dias por especialistas do
mundo todo. O grande problema estava na forma usada para coletar dados de
pacientes. O banco em questão foi obtido junto à empresa Surgisphere, baseada
em Chicago, nos EUA, mas era pouco transparente.
Em uma carta enviada à Lancet no
dia 28 de maio, 180 cientistas destacam que os autores não divulgaram quais
países participaram do estudo ou mesmo a lista de hospitais que forneceram as
informações. Isso impedia que a veracidade dos dados do estudo fossem checadas
por uma equipe independente de especialistas. A Surgisphere, porém, afirmava
que não podia fornecer os nomes das instituições que toparam ceder os dados
devido a acordos de confidencialidade.
A confirmação não veio, e a
credibilidade da pesquisa só diminuiu. Até que, na tarde desta quinta-feira
(4), os próprios autores publicaram uma nota em que pedem ‘retratação’ do
estudo, argumentando que não podiam mais garantir a veracidade dos dados usados
para fundamentar a pesquisa. O artigo científico da Lancet, então, foi
removido.
A OMS declara ter revisado os
dados e não encontrado motivos suficientes para que os testes sigam
paralisados. Segundo o órgão, os testes com cloroquina envolvem pelo menos
3.500 pacientes de Covid-19 em 35 países.
Vale, aqui, um lembrete: essa
retomada não significa que a OMS recomende o uso da cloroquina, ou mesmo
reconheça sua eficácia. Ainda não há provas de que a substância – ou qualquer
outra – reduza a mortalidade de pacientes infectados ou imunize contra o novo
coronavírus.
“Não aconselhamos o uso de hidroxicloroquina
ou cloroquina no tratamento da Covid-19 fora de testes clínicos randomizados ou
sob supervisão clínica apropriada, sujeita a autoridades reguladoras
nacionais”, disse em coletiva de imprensa Mike Ryan, diretor executivo do
programa de emergências da OMS.
A cloroquina é um medicamento com
bons resultados no tratamento de malária e doenças autoimunes, como lúpus e
artrite. Mas ainda precisa se provar como alternativa a pacientes infectados
pelo novo coronavírus.
A droga se mostrou promissora
pela primeira vez em testes in vitro – em culturas de células em laboratório –
feitos na China. A pesquisa chinesa mostrou que o medicamento poderia inibir a
entrada do novo coronavírus nas células, limitando sua mobilidade.
Depois, tiveram início pequenos
testes com humanos. Ministrada junto da azitromicina, a cloroquina até se
mostrou capaz de ajudar a diminuir a carga viral em pessoas com Covid-19.
Contudo, a pesquisa que chegou a esse resultado, feita na França, considerou
apenas 36 pessoas – uma amostragem pequena demais para se cravar qualquer
conclusão. Você pode ler o estudo neste link.
Não demorou para que a validade
desse estudo inicial fosse questionada: os testes não contavam, por exemplo,
com um grupo controle – pessoas escaladas para não receber o medicamento, e
servirem como “régua” na hora de se comparar os resultados. O cientista francês
que liderou a pesquisa também tem um histórico polêmico: além de cético quanto
ao aquecimento global, é crítico da vacinação obrigatória.
O fato é que, até agora, existem
mais estudos que questionam os resultados obtidos em grupos pequenos do que
pesquisas que corroboram com essas conclusões. Em um artigo publicado na
revista JAMA, que analisou 1,438 casos de 25 hospitais, o uso dessas
substâncias não alterou de forma significativa a taxa mortalidade. Além disso,
quem usou a combinação tinha chance maior de sofrer de falência cardíaca.
No Brasil, um estudo preliminar
precisou ser suspenso depois que 11 pessoas tratadas com cloroquina morreram de
Covid-19. Os pesquisadores destacaram, à época, que altas doses do remédio
poderiam causar arritmias severas.
De acordo com um novo estudo
publicado no New England Journal of Medicine, a hidroxicloroquina também não
impede que pessoas que tiveram contato com pacientes de Covid-19 de desenvolver
a doença. No experimento, que envolveu 821 voluntários, cerca de 12% das
pessoas que receberam hidroxicloroquina desenvolveram Covid-19. Já no caso do
grupo controle, que tomou ácido fólico (vitamina B9) como placebo, o percentual
daqueles que contraíram a doença foi de 14%.
Quase 40% dos pacientes tratados
com hidroxicloroquina sofreram de sintomas como náusea, irritação no estômago e
diarreia – só 17% dos voluntários do grupo placebo sentiram o mesmo. Nenhuma
alteração na taxa de mortalidade ou na frequência cardíaca, no entanto,
apareceu. Vale a menção, porém, que o estudo foi feito à distância, com
usuários fornecendo por contra própria suas informações de saúde e acompanhados
por médicos pela internet.
Resumo da ópera: estudos sobre a
doença ainda esbarram em limitações como o número de pessoas analisados e os
métodos de coleta das informações. Isso faz com que a cloroquina não possa ser
descartada por completo, claro – mas indica, também, que ela ainda não
apresentou o suficiente para ser encarada como salvadora da pátria.
A tendência é que o potencial – e
os efeitos colaterais – do medicamento fique mais clara nos próximos meses.
Existem, hoje, mais de 200 ensaios clínicos focados no teste da
hidroxicloroquina pelo mundo, segundo informações do governo dos EUA.
A recomendação de uso do
medicamento, que pode ter efeitos colaterais, para tratamento e prevenção de
Covid-19, portanto, ainda é precoce. E deve ser evitada por médicos – pelo
menos até que novos resultados surjam. É assim que a ciência trabalha.
Guerra de versões
Um parecer científico da
Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), publicado no dia 18 de maio, destaca
que o posicionamento pelo uso imediato da cloroquina é “perigoso” e “tomou um
aspecto político inesperado”.
A aplicação da hidroxicloroquina
ganhou evidência após Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, afirmar em
março que o país começaria a testar a droga para tratar pacientes de Covid-19.
Trump chegou a dizer também, no mês passado, que estava tomando cloroquina
preventivamente contra o coronavírus.
As menções ao medicamento
aparecem no discurso do presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia.
No Brasil, o governo chegou a modificar o protocolo do Ministério da Saúde e
autorizar o uso da cloroquina para casos leves, na tentativa de incentivar a
distribuição.
Hoje, é preciso que o paciente
autorize a aplicação – e o médico decida, autonomamente, se o caso deve ser
tratado ou não com a substância. No início de junho, os Estados Unidos
anunciaram a doação de 2 milhões de doses de hidroxicloroquina ao Brasil.
fonte: superinteressante
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